Apenas rapazes latino-americanos
No post anterior (leia aqui) discuti o estranhamento que é causado em nós, brasileiros, quando somos confrontados com nossa própria latinidad. Ou seja, o fato de não nos vermos como latino-americanos, embora sejamos, obviamente, cultura, histórica e geograficamente latino-americanos. Afinal, se podemos ser considerados como latino-americanos por tantos prismas e aspectos, por que, então, não nos vemos assim?</p
A primeira e mais óbvia resposta é o idioma. Mesmo com a latinidade não se restringindo a língua espanhola, mesmo com o aumento dos negócios e do turismo entre os países, mesmo com o aumento da procura por Aulas de espanhol em São Paulo e em todo o Brasil (com vagas e cursos sendo oferecidos na rede pública de ensino e com a constante aceitação da língua espanhola como uma disciplina “regular” do currículo escolar), mesmo com os dois idiomas (português e espanhol) sendo bem parecidos, o idioma continua a ser uma espessa barreira para o reconhecimento da irmandade cultural entre o Brasil e as demais nações da América Latina. Embora, possamos de certa forma nos comunicar com os falantes de espanhol, os cursos de espanhol estão cheios de anedotas de situações constrangedoras geradas por frases mal compreendidas e falsos cognatos. Além disso, a diferença idiomática nos impede de comungar (pelo menos a maioria de nós) das mesmas obras culturais (sejam elas de alta cultura ou da cultura pop) sem a necessidade de uma edição traduzida (e como sabemos, nem todas as obras são traduzidas).
Contudo, a língua não pode ser a única causa de tal estranhamento com nossa latinidade. Pois, além de ser admirada, a cultura brasileira possui grande influência e penetração nos demais países latino-americanos. O escritor cubano Reinaldo Monteiro, ao dar uma entrevista durante sua participação em um evento em Porto Alegre, se sentiu surpreso com a baixa influência da cultura e, principalmente, da literatura dos demais países latino-americanos no Brasil. Uma vez que, o contrário ocorre com bastante força. Principalmente em Cuba. Ainda na entrevista, o autor cubano fez referência ao valor que é dado em cuba para a cultura brasileira “mais erudita” (de Villa-Lobos até Machado de Assis) e até mesmo para os movimentos culturais mais recentes (como a Tropicália, por exemplo).
A questão, então, é por que tal processo ocorre? Por que nossos vizinhos consomem uma porção significativa de nossa cultura e nós consumimos tão pouco da cultura deles? Existem vários possíveis fatores e muitos outros ainda a serem pensados e descobertos. Um deles é a nossa ambição em ocupar uma posição de poder, liderança e influência na América Latina. Essa ambição, obviamente, é (e foi) inspirada na grande potência mundial, os Estados Unidos. Tal inspiração acaba exigindo que exportemos muito mais do que importemos cultura dos países que ambicionamos influenciar. Além desse fator, durante muito tempo nossa elite cultural e econômica considerou como válido, erudito ou artisticamente relevante apenas aquilo que era produzido “do lado de lá” do oceano atlântico.
Por mais que existam semelhanças históricas, na formação dos quadros das elites, na construção social, na posição geopolítica, a união dos povos latino-americanos continuará sendo inviável (não falo aqui de uma união de estado único, mas uma comunidade de estados com órgãos comuns, a exemplo, do modelo buscado – mas ainda não atingido – pela União Europeia). Já que nós, parte importante desse processo, não nos consideramos latino-americanos e, portanto, não cogitamos a formação de um bloco político e econômico com os demais países (cogitamos apenas parcerias econômicas). Mais do que a rivalidade no futebol, é a falta desse reconhecimento que impede uma união mais profunda entre nós e os demais países para a formação de uma comunidade de estados latino-americanos. (Claro, os outros países também não compõe uma massa unificada e, logo, apresentam características próprias que impedem a participação e, por conseguinte, a própria formação de tal bloco). Tal identificação passa pelo aumento de brasileiros com proficiência na língua espanhola e por um verdadeiro intercâmbio cultural que possa, enfim, fazer com que nos percebamos como aquilo que realmente somos em relação aos cidadãos dos demais países da América Latina. Iguais. Membros do mesmo povo. Cidadãos que compartilham os mesmos problemas. Cidadãos que podem buscar juntos a solução para tais problemas. Irmãos. Enfim, apenas rapazes latino-americanos. Que um dia, quiçá, poderão trazer na cabeça as mesmas canções do rádio, dos mesmos antigos compositores.