Meu pai de técnico, eu de comentarista e Camus de goleiro

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Albert Camus era francês, foi filósofo, autor e jornalista. Meu pai, Otávio (ou Tavião Preto), é brasileiro, foi vendendor porta-a-porta e operário. Camus foi goleiro, meu pai lateral-direito e técnico. Camus foi um importante intelectual, meu pai mal tem ensino fundamental. Contudo, existe ao menos uma coisa em comum entre os dois: ambos clamam ter aprendido todas as coisas realmente importantes sobre a vida por meio do futebol. Nada me tira da cabeça, todavia, que seriam duas coisas, conhecesse meu pai o niilismo. Mas, esse não é nada importante neste post, ao contrário do futebol.

 

O futebol que é apenas um esporte para uns, 20 homens correndo atrás de uma bola (os goleiros não correm atrás da bola, pelo menos não em circunstâncias normais), para outros é paixão, emoção, filosofia de vida e movimentador de bilhões. Essas e muitas outras coisas a respeito do futebol fazem-no mais do que um jogo. O fato de Camus ter atribuído tamanha importância ao jogo bretão em sua formação mostra que o esporte não é objeto de devoção apenas das massas menos cultas.

 

Ora, mesmo sendo tão importante, o futebol teria alguma coisa a ver com a língua portuguesa? Claro! Pense bem nas semelhanças: os dois vieram da Europa, cheios de erudição e cerimônia, e foram, por nós, imbuídos de ginga, graça infantil e malandragem. Enfim, fizemos com que ambos “amolecessem a cintura”. O esporte de cavalheiros apreciado pelo intelectual Camus, em nossas terras, se tornou o jogo de moleque adorado pelo operário Otávio. De maneira semelhante, a última flor do lácio de Fernando Pessoa, ao ser plantada em nosso solo, teve suas pétalas mitigadas em várias cores pela mistura com as espécies nativas cultivadas por Mário de Andrade.

 

Não há nada de ufanístico em minha constatação. Que, diga-se de passagem, não é minha. Na verdade, foi-me trazida pelo contato com estrangeiros. Quando estava na Academia Italiana de Salerno, alguns de meus amigos e professores estrangeiros, com muito mais milhagens do que eu, me diziam que havia uma grande diferença entre o português de Portugal e aquele que eu (raramente ali, é claro) falava. Que o português que eu falava tinha um “eu-não-sei-o-quê” de mais bonito, como se fosse mais… musical. Foi exatamente esse o adjetivo que David Bowie aplicou ao ouvir as versões de Seu Jorge para suas canções. Esse é o mesmo argumento dado por Esperanza Spalding para explicar seu fascínio pela bossa nova.

 

Metáfora semelhante é utilizada pelos jornalistas esportivos estrangeiros para descrever nosso futebol. Porém, ao invés da música, fazem uso da figura da dança, chamando nossos jogadores de Jogadores Samba (Samba Players) em óbvia alusão a mais difundida de nossas danças típicas.

 

Não preciso dizer aqui que música e dança estão intimamente ligadas. Porém, a dança do jogo está em disritmia com a música da linguagem. Pois, quando falamos de futebol sempre damos preferência a vocábulos e metáforas oriundas da guerra. É claro, existem aquelas vindas da música (Maestro), mas são poucas, poucas a ponto de serem consideradas exceções, comparadas as metáforas e elogios bélicos: o desempenho de um time na temporada é chamado de campanha, o centro-avante eficiente é artilheiro ou matador, o volante é o cão de guarda, o zagueiro, o xerife, jogos dramáticos e decisivos são chamados de batalha do X ou do Y, um time devotado é um time guerreiro e até mesmo os dribladores, virtuosos passistas por excelência, demolem a defesa adversária. A lista poderia seguir por 116 anos….

 

Por que, então, usamos esses termos? Por que, se prezamos tanto a estética de nossa língua e de nosso jogo, não conseguimos perserva-la quando os unimos? Alguns podem tentar responder dizendo que isso se deve ao futebol moderno que produz (e valoriza) mais xerifes que maestros. Outros podem dizer que tais termos são um ato falho freudiano coletivo deixando escapar o que todos nós, no fundo, sabemos: os universitários de Cambridge criaram uma fórmula para sublimar o instinto guerreiro e a sede de glória humana. Outros, talvez, possam arrumar uma terceira explicação. Eu não preciso. Sou partidário da segunda. Acredito que a mesma força que livre produziu Áquiles, sublimada produziu Pelé.

 

Somente a Inglaterra, com todo o seu cerimonial e requinte, seria capaz de sublimar em jogo o instinto guerreiro humano. E o Brasil? O Brasil é uma nação de 180 milhões de Sun Tzus.

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