Quarta-feira de cinzas… e tá tudo acabado.

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“Por que esse nome, mãe, quarta-feira de cinzas?”
“Porque depois de todos esses dias cantando, dançando e pulando, só o que resta desse pessoal são as cinzas”.

 

Talvez não tenha acontecido exatamente assim. Muito provavelmente não aconteceu exatamente assim. Mas em algum momento de minha infância, um diálogo bem semelhante ao acima foi travado por mim e por minha mãe. Muito provavelmente essa também foi minha primeira dúvida semântica e etimológica.

 

Dúvida essa que minha mãe resolveu responder com uma fábula. Nessa época, é claro, ela ainda não poderia saber o quanto eu me interessaria por semântica e por fábulas. Nessa época, aliás, eu mal sabia como era o carnaval de verdade e imaginava-o como algo muito semelhante a um baile de máscaras, com confetes e serpentinas para todos os lados; algo que, já naquela época, não passava de uma fábula.

 

Hoje, contudo, duvido que minha mãe realmente tenha acreditado na resposta fabulosa que me dera. Afinal, sempre fora, e ainda é, mais do que nunca, católica fervorosa. Sempre ia (e ainda vai) às missas nas fatídicas quartas. Não perdia (e ainda não perde) uma missa de cinzas. Então, porque fornecer essa explicação fabulosa? Para cessar as perguntas? Prefiro acreditar que não. Para manter vivo o espírito da fantasia no coração do menino? Também duvido. Fabulas nunca combinaram muito com minha mãe, uma descendente de imigrantes do sul da Itália criada no ambiente rural. Acostumada desde cedo ao trabalho é uma mulher prática. Mais do que isso, ensinada desde cedo a valorizar o trabalho é uma mulher pragmática. Nunca fora dada nem ao menor dos escapismos. Então, por que responder a pergunta com uma espécie de etimologia lendária, fabulosa? Simples, por uma pequena ironia. Uma pequena, sutil e inocente ironia que eu, ali, menino, não fui capaz de entender, reconhecer ou apreciar. Mal sabia ela, contudo, o quanto eu viria a entender, reconhecer e apreciar as ironias e, mais do que isso, a pratica-las com uma frequência e sofisticação que ela jamais sonhara.

 

Hoje, adulto, mergulhado na era da informação, aceitar tal explicação não é mais possível. Nem justificável. Então, refaço, dessa vez para mim mesmo, a pergunta: por que esse nome: quarta-feira de cinzas?

 

A origem é religiosa. Mais especificamente, católica. A quarta-feira de cinzas marca o início da quaresma. Um tempo de provação, de jejum e de austeridade. As cinzas são oferecidas aos fiéis como um lembrete (do pó viestes, ao pó voltarás) de que a vida é efêmera e passageira, sempre sujeita a morte. Um lembrete para que o fiel aceite esse caráter transitório da vida mundana e se concentre na única coisa realmente verdadeira: Deus e a vida eterna. Além de um lembrete, as cinzas também são um convite: um convite ao louvor a Deus, a mudança de vida e a outros valores da igreja católica apostólica romana.

 

Porém, para nós, brasileiros a quarta-feira de cinzas ainda faz parte do carnaval, ou pelo menos metade dela, afinal a maioria dos serviços e das lojas só voltam a funcionar depois do meio-dia. E, se pelo menos metade desse dia ainda faz parte da folia (ou da recuperação dela) não seria todo esse significado católico soturno demais para fazer parte do carnaval, tal como ele é por essas bandas?

 

Por isso que eu, e sugiro por meio deste que outros façam o mesmo, fiz o injustificável. Adulto e mergulhado na era da informação retornei a explicação fabulosa e irônica de minha mãe. Não por ignorância, mas por opção. Porque tal explicação fabulosa e irônica parece o modo perfeito para por fim a festa máxima das forças dionisíacas, a maior e mais alegre festa popular do planeta. Tal explicação, ao menos, torna essa fatídica quarta-feira mais bela e mais agradável. Tão agradável que me enche de vontade de olhar nos olhos da folia e dela despedir-me roubando as palavras de Ana Carolina:

 

“Até o feriado.
Quarta-feira de cinzas e tá tudo acabado”.

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